12.6.08

O vale das sombras



Deixar Jeri não representou somente a continuação da jornada. Mas sim o início de um ciclo que representou importantes transformações na viagem e, é claro, em mim. Viajar, assim é viagem.
-
No dia que deixamos Jeri pedalamos até Jijoca, município que agrega Jericoacoara e serve de base para a localidade. Conhecemos o Luis, que nos recebeu em sua casa que fica junto à maravilhosa Lagoa Paraíso. Depois de longas conversas, comidas e uma fogueira chegou a hora de dormir. Já ali, deitado na rede, percebi algo estranho em mim.
-
Foi a pior noite que havia tido na viagem. Tive sonhos ruins e sentia que meu corpo não estava legal. Acordei não tão bem e logo arrumamos as coisas para partir. Senti pela primeira vez uma falta de vontade para pedalar. Estava sem ânimo. Fraco fisicamente e creio que mais ainda emocionalmente. Pedalamos todo o dia 36km até Cruz e lá comemos e descansamos para o outro dia. Pensei que uma boa noite de sono me recarregaria as energias, mas no dia seguinte, quando pedalamos 41km até Almofala, ainda não me sentia bem. Já em Itarema, alguns kms antes, já tinha resolvido seguir andando, mais devagar e pensativo.
-
Passamos a noite numa instalação na beira da praia e na manhã seguinte voltamos a pedalar pela areia. Passamos por um trecho dificilissímo de Patos pra Barra de Moitas. A areia se transformou num manguezal, com lama no joelho e com mais de 20 kg em cada bike sofremos muito para conseguir chegar na beira de um rio. Atravessamos com a ajuda de uma canoa e conhecemos umas pessoas que estavam num bar. Estava muito quente, eu tossia muito e sentia meu corpo fraco. A maré já estava enchendo, resolvemos ficar aquela tarde por lá, descansar um pouco e rever os planos. Comemos e eu fiquei um bom tempo deitado numa rede.
-
Analisando a situação vimos que a melhor opção era esperar a maré baixar, umas 6 da tarde, e aproveitar a lua cheia para seguir de noite, sem o calor. Voltamos a pedalar 5 e meia por uma estrada de terra que tinha até Icarai, aonde retornamos para a praia e pedalamos umas três horas de noite. Mantivemos um ritmo bom. Pedalar pela areia é tranquilo, o problema são os acidentes geográficos que ocorrem, como pedras, rios, etc. Em Caetanos senti que já estava suficiente para aquele dia e fomos procurar um lugar para dormir. Encontramos um lugar para colocar nossas redes na Companhia de Pescadores.
-
Logo cedo, sob um sol quente, voltamos a pedalar. Embora eu estivesse desanimado, mantinha a convicção de que não podia ceder àquela circunstãncia. Logo tudo passaria, só não sabia quando. Atravessamos as praias de Sabiaguaba, Apiques, Inferno, Baleia, Mundaú e Fleixeiras até chegar em Guajiru. Todas muito bonitas, principalmente a Baleia, e extensas. Ótimos visuais e um pouco de ânimo. Só pensava em chegar logo em Fortaleza.
-
Na manhã seguinte saímos em direção à Lagoinha. Foi uma pedalada tranquila, somente nos últimos 5 kms encontramos um fortíssimo vento contra que fez com que levássemos muito tempo pra chegar. Outra linda praia que vale a pena, mas não ficamos muito ali. Do jeito que estava o vento, não conseguiríamos seguir pela praia. Do jeito que estava minha saúde e meu ânimo, não tinha tanta vontade de pedalar pela estrada até Fortaleza. Pegamos uma carona num ônibus e chegamos naquele mesmo dia na capital cearense.
-
Cidade grande. O ser humano e suas cidades. Buzina, fumaça. Fumaça e buzina. Asfalto, grana, relógio. Todos querem muito, menos saber quem são. A maré que dita o tempo é a da bolsa de valores, a cotação do dólar. Você já fez o seu pedido senhor? Coloque tudo numa sacola de plástico.
-
Alguns dias em Fortaleza. Meu ânimo não melhorava. Minha saúde parecia estar pior. Buscava forças dentro de mim. Buscava encontrar eu mesmo a solução, mas o que senti era vontade de sair logo dali. Fizemos uma entrevista com o jornal local e revisamos nossas bikes. Eu passava meu tempo indo numa livraria para ficar horas olhando um atlas maravilhoso. Construindo rotas, sonhando com estradas e lugares distantes. Mentalizando pedaladas.
-
Num certo domingo, pela primeira vez eu e o Rodrigo nos separamos. Combinamos de nos encontrar mais à frente. Saindo de Fortaleza, segui até Aquiraz passando pelo Porto das Dunas e mais umas belas praias. Ainda não estava animado. Cruzei Prainha, Presídio, Iguape e finalmente achei um lugar maravilhoso para acampar em Barro Preto. Armei minha barraca num gramado perto do mar. Não coloquei o sobre-teto para poder ficar apreciando as muitas estrelas que brilhavam aquela noite.
-
Foi uma noite muito especial. Sozinho, ali bem perto da natureza, sem barulho, sem nínguem, só eu, o mar e as estrelas, tive uma forte sensação de que logo as coisas estariam melhor. Que, assim como as fases boas não duram pra sempre, assim também é com as fases ruins. Contemplei e agradeci por estar ali, tão perto do sublime.
-
Acordei com o sol e um pouco mais animado para seguir, porém nem tanto. Decidi pegar a estrada direto para Canoa Quebrada e não parar em Morro Branco. Cheguei em Canoa dois dias antes do Rodrigo e aproveitei um pouco do sossego do lugar. Apesar de ser muito bela, Canoa Quebrada também passa por um processo de super urbanização. Existe até um loteamento que mede quase o tamanho da vila que já existe. Há pousadas em excesso, bares em excesso e turistas em excesso. É bom corrermos para conhecer tudo antes que nada mais sobreviva intacto.
-
Ali mesmo em Canoa Quebrada, eu e o Rodrigo resolvemos seguir separados. Existiram muitos motivos para essa decisão e cada um de nós temos nossas razões. Passamos 120 dias viajando e nossa convivência era praticamente de 24 horas. Dormimos até na mesma cama em Belém. O desgaste foi inevitável.